domingo, 20 de março de 2011

Viajei para a distante China numa manhã de sol - nisto de viajar há sempre alguma arte e alguma sorte - sempre tive ciência para onde queria ir  ,embora as circunstâncias nem sempre me tenham levado pelo caminho mais curto . Com sol ou chuva , eu raro protesto mas sorrio amiúde : tenho a serena convição dos que viajam com algum  propósito . Não te digo qual é o meu nem sequer para onde eu vou . Mas o comboio desta manhã saíu de Ulan Bator cedo e vai num vagar diferente dos comboios russos, como se não tivesse pressa de avançar . Olhar para um país a acordar através da janela de um comboio tem o seu quê de lectoral , de anfiteatro , nunca tive mais preciosa lição de geografia social  . São sete da manhã do último dia de Setembro e estou no comboio 24 que liga a Mongólia à China três vezes por semana . Depois de um longo e penoso processo de passagem da fronteira onde foi também preciso mudar as rodas de todas as carruagens - com uma bitola diferente - o comboio rolou a noite toda pelo novo país . Para já vejo uma nação acordada como um formigueiro - orientada , diligente , funcional - um país posto num crescimento sereno , outro impávido colosso de determinação . Em linguagem simples , uma nação que cedo ou tarde vai reclamar para si a quota de riqueza dos que se permitiram adormecer nas quimeras  do estado social , alguém se há-de lembrar de lhe chamar capitalismo das massas , deixo a oportunidade aos economistas que virão , suspeito que então a liberdade , a fraternidade e a igualdade hão-de ter dado lugar a outros conceitos que não consigo adivinhar . Por todo o lado se veem grandes obras de engenharia - estradas que se abrem , edifícios que refulgem de aço e de vidro - usinas a laborar , tudo isto num método que assombra - as crianças perfilam-se à porta das escolas como se perfilam os operários à entrada das fábricas , com gala e circunstância as escolas são as usinas do sucesso que há-de vir . Arrebatado com tanta diligência , quase me fugia o essencial , no campo há árvores iguais às outras árvores que eu vi noutros lugares , e núvens e rios e casas com telhados com dragões e mulheres que cosem conversas às soleiras das portas e carregam os filhos e olham dissimuladamente os homens que fumam e hortas cuidadas e telhados amarelos onde dormem espigas de milho cheias de sol . O homem é assim todo igual e todo o lugar se assemelha com o que um dia nos tocou .Estas são as mesmas espigas eu vi num outro fim de verão em cima dos mesmos telhados , nas aldeias de Cuzco , de Tras-os-montes ou de Choy-Gou-Bu .. Tu lês : «incapazes de combater a pobreza, combatem os pobres»  eu digo que uma ideologia é uma faca de dois gumes , a religião um possível cinismo , uma moeda tem duas faces e dois valores - consoante te faça falta ou não - um propósito pode ser uma virtude ou um vício . Um cavalo é nobre quando trota , o galo quando canta de manhã , o gato quando ondula ou salta de um lugar alto ou ronrrona , a ave quando voa , o cisne quando está no lago e a árvore quando mata a fome ou te dá sombra . Mas o homem., esse , só é verdadeiramnte nobre quando persegue o Bem.. E o Bem que eu vislumbro , só O encontro nas coisas simples . Mas lugares há  - eu sei - com reis e gente alta onde vive a razão , secretos nichos da sabedoria . São esses lugares que eu busco para minha educação . Chamo-lhes as cidades proibidas .

S.T. , Os diários de Rapa Nuï

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