« (...) Sinto-me
confundido por recebê-lo de cama. Não é nada, um pouco de febre, que eu trato
com gin. Estou habituado a estes acessos. Paludismo, creio, que contraí no
tempo em que era papa. Não, não gracejo, senão em parte. Sei o que está a
pensar: é muito difícil distinguir o verdadeiro do falso no que conto. Confesso
que tem razão. Eu próprio… Olhe, uma pessoa das minhas relações dividia os
seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem
obrigados a mentir; os que preferem mentir a não ter nada que esconder; e,
finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua
escolha o compartimento que mais me convém. Que importa, no fim de contas? As
mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras
ou falsas, não tenderão todas ao mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que
importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são
significativas do que fui e do que sou? Vê-se mais claro por vezes naquele que
mente do que no que fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A
mentira, pelo contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objecto.
Enfim, entenda como quiser, eu fui nomeado papa num campo de concentração.
Sente-se, por favor. Está a olhar a sala. Despida, é verdade, mas limpa. Um
Vermeer, sem móveis nem panelas. E também sem livros, eu deixei de ler há muito
tempo. Antigamente, a minha casa estava cheia de livros lidos pela metade. É
tão repugnante quanto essas pessoas que apenas beliscam um foie gras e mandam deitar
fora o restante. Aliás, agora só gosto de confissões, e os autores de
confissões escrevem sobretudo para não se confessar, para nada dizer do que
sabem. Quando pretendem passar à confissão, é o momento de desconfiarmos, vão
maquilhar o cadáver. Nada de desculpas, nunca, para ninguém, eis meu
princípio, de começo. Nego a boa intenção, o erro digno de estima, o passo em
falso, a circunstância atenuante. Comigo não se abençoa, não se distribui
absolvição. Faz-se a adição, simplesmente, e depois: “Dá tanto. O senhor é um
perverso, um sátiro, um mitómano, um pederasta, um artista etc.” Assim mesmo.
Com esta secura. Em filosofia como em política, eu sou, pois, a favor de
qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que
o trate como culpado. Tem em mim, meu caro, um partidário esclarecido da
servidão. Sem ela, para falar verdade, não há solução definitiva. Depressa
compreendi isso. Antigamente, eu só tinha liberdade na boca. No café-da-manhã,
eu passava-a em minhas torradas, mastigava-a durante todo o dia, levava para
toda a parte um hálito deliciosamente refrescado, a liberdade. Descarregava
esta palavra-mestra sobre quem quer que me contradissesse, eu tinha-a colocado
ao serviço dos meus desejos e do meu poder. Murmurava-a na cama, ao ouvido
adormecido das minhas companheiras, e era com sua ajuda que eu me descartava
delas. E destilava… Oh!, excito-me e perco o sentido da medida. No fim de
contas, aconteceu-me fazer da liberdade um uso mais desinteressado e até,
avalie minha ingenuidade, defendê-la duas ou três vezes, sem chegar, lá isso é
verdade, a morrer por ela, mas correndo alguns riscos. Tem de-se me perdoar
estas imprudências; eu não sabia o que estava a fazer. Não sabia que a
liberdade não é uma recompensa, nem uma condecoração que se festeje com
champanhe. Nem aliás, um presente, uma caixa de bombons para lamber os beiços.
Oh, não, é uma estopada, pelo contrário, e uma corrida de fundo, bem solitária,
bem extenuante. Nada de champanhe, nada de amigos que ergam a sua taça, olhando-nos
com ternura. Sozinhos numa sala sombria, sozinhos no banco dos réus, perante os
juízes, e sozinhos a decidir perante nós mesmos ou perante o juízo dos outros.
Ao cabo de toda liberdade, há uma sentença; eis por que a liberdade é pesada
demais, sobretudo quando se sofre de febre, ou nos sentimos mal, ou não amamos
ninguém. (...) » ( Camus, «A queda» )
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