sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Jornal

 «As funções duplas do padre, o qual é simultaneamente "inspector das coisas vagas" e médico das almas, foram distribuídas no mundo moderno sem padres e são exercidas não por uma classe de homens mas por muitas. Na sua qualidade de administrador de sacramentos e intérprete do mistério circundante, o padre é representado agora, bastante inadequadamente, pelo artista. A extraordinária e bastante desproporcionada importância atribuída pelo mundo contemporâneo aos artistas como tais, sem olhar ao seu mérito, é devida ao facto de o artista ser o evocador daqueles estados emocionais que são o divino. É verdade que o deus que evoca é muitas vezes um deus de paupérrima qualidade. Considere-se, por exemplo, a deidade implícita na novela de maior venda ou a balada popular. Contudo, para aqueles que são constituídos de maneira que sejam capazes de gostar dessa espécie de deus, essa é a espécie de deus de que eles irão gostar. Há uma hierarquia tanto entre os deuses como entre os homens. Aqueles cujo lugar na hierarquia humana é inferior, adoram deuses cujo lugar na hierarquia corresponde à deles. Os padres-artistas que evocam deuses inferiores para adoradores inferiores são eles próprios inferiores. Todavia, seja qual for a qualidade do deus evocado, o acto do artista é sempre sacramental. Ele produz genuinamente um deus de qualquer espécie. Daí a sua importância no mundo moderno. O seu nome está escrito em letra grande nas páginas do Who's Who; os anfitriãos convidam-no para jantar; os escritores tagarelas relatam os seus feitos na imprensa; correspondentes desconhecidos escrevem-lhe acerca das suas almas e pedem-lhe um exemplar da sua fotografia; as raparigas estão dispostas de antemão a apaixonarem-se por ele. Para o artista que goza desta espécie de celebridade, o mundo moderno deve ser um verdadeiro paraíso.O padre é um confessor, assim como um intérprete de mistérios. O artista pode encontrar meio de desempenhar as suas funções sacramentais, mas falta-lhe a espécie de treino e saber que torna um homem apto a ser um director de consciência. Foi ao advogado e ao médico que o padre legou esta parte dos seus deveres. O médico, e principalmente o especialista dos nervos, ocupa uma posição extraordinária no nosso mundo. O seu prestígio foi sempre elevado, mesmo durante aqueles períodos em que as doenças do espírito eram tidas como estando fora da sua jurisdição. Agora que o exorcista está extinto e o confessor é uma raridade, agora que a psicoterapia se proclama ela mesmo uma ciência e uma arte regular, o prestígio do médico duplicou. A sua posição no mundo moderno é quase a do curandeiro entre os primitivos.Com o declínio do poder sacerdotal a importância do advogado também aumentou. O advogado da família assume responsabilidade vicarial pelos actos dos seus clientes. Ele é o recipiente dos seus segredos mais íntimos; ele dá-lhes não simplesmente conselho legal mas até moral. Os sacerdotes podem desaparecer; mas o número de pessoas que não gostam de responder pelas suas próprias acções, que se esquivam a tomar decisões e desejam ser conduzidos, não diminui. O director de consciência surgiu como resposta a uma genuína necessidade humana. O médico e o advogado preenchem entre eles o seu lugar vago.»

 Aldous Huxley, "Propper studies" 

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